Thursday, February 24, 2011

Alvinices

Há um Fernando Alvim de maluqueira, que quase sempre é levado pouco a sério. Mas há também um Fernando Alvim com traços de absoluta genialidade: é o Alvim da rádio, o Alvim do tempo da antiga Radio Comercial ou da actual Prova Oral, é o Alvim que escreve crónicas que eu gosto muito de ler e onde não raras vezes encontro um pouquinho de mim. É uma figura que admiro e que acho que vale a pena olhar com atenção, para lá da sua faceta mais evidente ou mais popular.
Aquim fica um Ctrl C/Ctrl V de dois dos seus textos, disponíveis em http://www.esperobemquenao.blogspot.com, inspirados e inspiradores, que vale a pena ler.
Este dia não passará
Ainda hoje me apeteceu mudar a minha vida toda. É uma espécie de frémito, uma coisa que me dá aqui para os lados da dorsal e que faz pousar os pés no chão com a finíssima convicção de que este dia não passará. E enquanto lavo a cara e olho para o espelho como sempre fazem nos filmes os revolucionários, penso naquilo que irei deixar para trás. E então, penso num incêndio em que tenho que decidir depressa o que levar comigo. E então penso na minha vida incendiada de repente, como tantas vezes acontece a tantos outros, só que desta vez é a minha e não é mais o acidente do outro lado da estrada, não é mais a notícia de alguém que eu não conheço, não foram os filhos dos outros, não foi noutro país nem numa rua que eu nem sei onde é, desta vez é comigo, foi em minha casa, fui eu, foi a minha vida. E tudo isto está de tal forma em chamas neste agora que peço pois que atirem água fria para cima do que faço e escrevo.
Hoje apeteceu-me mudar tudo e a minha grande dúvida foi desde logo perceber por onde começar. Devo eu mudar tudo à minha volta na esperança que eu me mude também? Ou devo eu mudar para que tudo mude à minha volta? Parecem iguais, não é? Mas não são. São diferentes. E aqui vos adianto: É mais fácil mudarmos tudo à nossa volta. Porque é muito difícil mudarmo-nos. Só se for de país, de casa, de roupa. Porque mudarmo-nos a nós, ao nosso eu com o qual sempre vivemos, que conhecemos tão bem, que pensamos em função de, que damos comidinha à boca há tanto como se fosse um filho, isso não é nada fácil.
Hoje apeteceu-me mudar a minha vida toda, mas o mais que fiz foi apenas escrever sobre isso e comprar umas calças novas.
O amor está no desemprego
Era previsível que isto fosse acontecer e aconteceu. O amor está também no desemprego e engrossa as filas enormes que vão dando a volta aos prédios. O amor está na fila, cabisbaixo, a pensar na vida ou possivelmente na falta dela. Dizem que tem a ver com a crise a nível global, mas quer-me parecer que em Portugal o que quer que seja, é sempre ajustado à nossa realidade. Nada é global em Portugal, mesmo a globalização tem uma versão nossa. Por mais que abram franchising. Tem que haver a nossa mão, tem que haver cozido à portuguesa uma vez por semana, tem que haver Amália, tem que haver o nosso jeito, mesmo que seja só para o retoque final. E talvez por isso, exista um amor português. Que está justamente no desemprego como o outro. Mas este é nosso. E por isso nos dói.
O amor em Portugal está então como se vê e a culpa foi da alteração do modelo de contrato de trabalho que até então vigorava e que nestes últimos tempos – por causa desta maldita crise – foi perniciosamente alterado. Eu sou desse tempo, do tempo em que quando se amava alguém, imediatamente se erguiam as canetas, os papéis na mesa e nos comprometíamos a amar-nos uma vida inteira, recebendo por isso todas as regalias inerentes a um contrato de trabalho, que nos garantia a imediata pertença ao quadro da empresa, garantindo assim subsídio de Natal, férias, segurança social, essas coisas.
Só que essas coisas alteraram-se. E do mesmo modo que se instalou a mania do trabalho precário, logo vingou o amor precário. E quantos mais contratos se celebravam a recibo verde, mais amor a recibo verde existia. De tal modo, que progressivamente o amor se transformou num trabalhador intermitente que nunca sabe se tem ou não trabalho, embora toda a gente diga que o amor dá. Isso era dantes, bons tempos em que amor dava trabalho, agora não dá nenhum. E é justamente por isso, que está no desemprego.

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