Monday, September 10, 2007

A place called home


"Someday I'll go where there ain't no rain or snow
‘Til then, I travel alone
And I make my bed with the stars above my head
And I dream of a place called home"

Encerramento oficial do Verão

Ao lanche houve croissants porque o tempo farrusco já não convidava a gelados. Falávamos então do fim do Verão, da melancolia que Setembro traz... e começa a ouvir-se a trovoada e a sentir-se os primeiros pingos. Continuo o caminho para casa e rapidamente os vejo engrossar. A "chuva-molha-parvos" transformou-se numa boa chuvada.
Chego a casa ensopada.
Lá fora já está escuro apesar de serem só 6 da tarde, o céu está carregado de nuvens, rasgadas por relâmpagos de quando em quando... e os trovões mantém-se rugidos fortes, cada vez mais perto.
Não deixa de ser um espectáculo bonito, mas ainda assim preferia estar a regressar a casa pela marginal, depois de uma boa tarde de praia, com um sol radioso...
Mas não é maresia o aroma que sinto. O inconfundível cheiro de terra molhada após as primeiras chuvas não me deixa sonhar mais...
Parece que está oficialmente encerrado o meu Verão. E como inaugurei este Outono antecipado com uma molha daquelas à antiga, o melhor é mesmo tomar um banho quente... já apetece!

Monday, September 3, 2007

No one ever told me it would be easy. I never thought it would be this hard.

O meu lugar. O meu espaço. O meu papel. O meu dever. O meu querer. O meu poder. O meu tempo. O meu modo. O meu melhor. O meu pior. O meu "eu pessoa". O meu "eu enfermeira".
Todos se misturam e confundem, todos formam quem eu sou, todos porcuro todos os dias, uns com mais dúvidas, outros com mais certezas. Porque não quero e sinto que não posso abdicar de nenhum deles sob pena de perder o fraco rasto que ainda vou tendo de mim própria; mas sinto também que muito do que acredito está constantemente sob a ameaça do cansaço, da rotina, do comodismo e do desleixo instalado.
E assim vagueio em dias como o de hoje. Amanhã será outro dia.
"Another day, another chance to get it right"...

Eduardo Prado Coelho

Há quem diga que quando as pessoas morrem se transformam automaticamente em óptimas pessoas, talentosas, generosas e cheias de outras qualidades admiráveis, mesmo que em vida todos pareçam tê-las esquecido. Não quero, obviamente, cair nesse registo. Mas se de alguém se tem falado, na minha opinião, com muita justiça, é de Eduardo Prado Coelho, um ser iluminado que, para nossa honra, nasceu português.
E se Prado Coelho escreveu sobre tudo um pouco, foi sobretudo nas suas crónicas que mais me cativou com o seu estilo único e inconfundível.
Nestes dias, resolvi recuperar um conjunto de quatro crónicas suas acerca de um internamento num hospital público. Gosto especialmente destas opiniões escritas, destas reflexões. Opiniões que o "comum mortal" nem sempre consegue exprimir, pensamentos que nem todos os utentes do SNS têm possibilidade de publicar, textos que me tocam especialmente a mim que, do outro lado da barricada e tantas vezes imobilizada e amordaçada pelo peso "do sistema", luto diariamente contra a tendência aparentemente inevitável da rotinização e da desumanização...
Deixo então aqui as crónicas transcritas e o meu agradecimento a Eduardo Prado Coelho que, sem sequer suspeitar da minha existência, me ajudou a manter o sentido crítico que tanto temo perder.

"quarta-feira, 28 de Dezembro de 2005

Memória de Santa Maria

Meu caro Correia de Campos, amigo e camarada.
Esta minha carta, que irá provavelmente preencher várias crónicas, tem certamente muito de subjectivo e aproximativo. Mas talvez não seja inútil. Tinha estado internado em Santa Maria em 1972. Agora, muitos anos depois, houve imensas coisas que mudaram, e eu já mal me lembro do que então se passou. Mas há curiosamente um ponto comum. Os corredores continuam a ter relógios que estão todos parados em horas diferentes. O efeito é surreal. Não seria possível tirá-los?Há cerca de seis anos, tive durante um Verão de acompanhar a minha mãe ao serviço de urgências - três vezes, a última definitiva. Escrevi então uma crónica sobre as melhorias que se poderiam fazer no processo de entrada dos doentes e na sala de espera. Tive a satisfação de receber uma carta dos serviços responsáveis pelo funcionamento do Hospital de Santa Maria em que diziam que iam analisar as minhas sugestões. Um acidente de percurso na minha saúde levou-me agora de novo a Santa Maria, e verifiquei que no processo de entrada muitas melhorias tinham sido feitas. A sala de espera tinha sido inteiramente reformulada e batia agora aos pontos a sala de espera da gare de Coimbra B. Apenas um senão. Uma porta lateral onde alguém escreveu à mão "é favor fechar a porta", mas raramente as pessoas se preocupam com isso. Donde, tal como num filme famoso em que Jean-Pierre Léaud, sentado num café, berrava para cada cliente que entrava "La porte!!!!", nós somos obrigados a gritar algo de semelhante ou a irmos regularmente fechar a mencionada porta.
Como exercício poderá ser saudável, mas não ao alcance de todos os doentes - direi mesmo que alguns sofrem com o frio.
Há, depois, a prova da triagem, onde a troco de algumas respostas breves nos indicam um rumo na vida, e no meu caso tratava-se de tomar o corredor imediatamente à esquerda e ir até ao fim. Assim fiz, mas com manifesta infelicidade. Um ser que pertencia a uma empresa de segurança disse-me que tinha de sair do edifício, dar a volta pelo bilhar grande e entrar não sei por que porta. Expliquei-lhe que o médico do serviço de triagem dissera para tomar o corredor imediatamente à esquerda. O homem, que era daquele estilo do idiota que quando lhe apontam a Lua olha para o dedo, opôs-se terminantemente. Pedi-lhe para se identificar - que para isso devia servir o cartão plastificado que tinha ao pescoço, mas o aranhiço eléctrico voltou o cartão para dentro e uivou estrepitosamente para dizer que não se identificava. Comecei a empurrá-lo e estava disposto a dar-lhe um merecidíssimo murro não fora o facto de ele se ter encostado a uma maca onde me pareceu ver um doente inquieto com a sua própria sobrevivência.Moral da história: sei que não é fácil estar naqueles lugares, mas exige-se uma pessoa que saiba pensar, sorrir, ser amável e ajudar os outros em vez de criar obstáculos para ostentar o seu poder anão. Sugiro que coloquem esta lamentável personagem na vigilância aos ratos que estão nas caves do hospital (isto sou eu a imaginar), mas nunca em contacto com outros seres humanos.Amanhã continuo. Professor universitário


quinta-feira, 29 de Dezembro de 2005

Memórias de Santa Maria (2)


Meu caro Correia de Campos, amigo e camarada:
Continuemos a nossa conversa. O tal corredor à esquerda de que já falei conduzia ao Serviço de Observações, que não me deixou boas recordações. Há uma espécie de princípio: "Ó vós que aqui chegais abandonai tudo o que pertencia ao mundo." Um despojamento total. Tire a roupa: anotam peça a peça e amarrotam-na cuidadosamente em sacos que não têm pegas, para dar ao acompanhante que espera lá fora. Depois disseram: "Tire os óculos." Respondi: "Não tiro." A seguir o relógio. E segundo o regulamento, deveria entregar o telemóvel. Recusei. Por fim, o livro que levava comigo. Segundo o regulamento, não se pode ter livros! É assim que pretendem fomentar a leitura? Recusei entregar os Doidos e Amantes da Agustina Bessa-Luís, dizendo que da Agustina ninguém jamais me separaria. Deram-me então um papel com a lista das minhas infracções, para eu assinar. O que fiz orgulhosamente. Mas, como dizia o outro, orgulhosamente só. Quase todos os que ali chegavam vinham num tal estado de desamparo existencial que aceitavam todas as ordens, sobretudo se enroladas naquele tom melífluo que pretende infantilizar o outro: "Agora a roupinha, senhor Silva." Conheço mesmo um caso em que a uma senhora já de idade pretendiam tirar os dentes que lhes pareciam postiços. E não eram. Não sei quem elaborou regulamento tão estúpido e quais as fundamentações para ele (medo dos roubos?). Imagine apenas, meu caro amigo, aquelas pessoas que sem óculos não vêem um palmo adiante do nariz e entram numa bruma espessa. Imagine ainda que elas também entram num espaço sem tempo, em que já quase não sabem se é noite se é dia, no mundo dos vivos. O desespero é total. Antes
deixar que nos roubem o relógio do que ficar nesse limbo da existência em que os séculos se confundem.
Segundo ponto. É suposto que as pessoas que ali entram sejam levadas a diversas modalidades de exames nos mais diversos andares. São então conduzidas por corredores extremamente frios e sentem que pelo baixo custo de uma taxa moderadora lhes deram por extra uma excursão à Lapónia. As bandeiras das janelas estão abertas certamente no cumprimento daquele princípio que qualquer dona de casa aplica no seu lar: é preciso arejar a casa. Mas aquelas viagens no gelo, à espera de elevadores que avariam dia sim, dia não, têm algo de uma verdadeira aventura. Há outro aspecto interessante: é o serviço que envia que fica encarregado de ir buscar a pessoa na sua maca. Por motivos de engarrafamento, por vezes é preciso esperar cerca de uma hora que apareçam. Os menos resistentes acabarão por morrer. Outros apanharão broncopneumonias. Apenas alguns, num vigoroso princípio de selecção natural, conseguem sobreviver. E então logram aplicar o princípio nietzschiano: o que não me mata dá-me forças.Talvez haja vantagens que eu ignore nesta alternância violenta entre o calor das salas e o frio intenso dos corredores. Se assim for, Santa Maria cumpre na perfeição a sua tarefa. Não é a taxa moderadora, mas o frio moderador. Neste país insuportavelmente frio, onde os estrangeiros pensam que "frio" é uma palavra desconhecida. Professor universitário


sexta-feira, 30 de Dezembro de 2005

Memórias de Santa Maria (3)

Meu caro Correia de Campos
Amigo e camarada
Finalmente chego ao Serviço de Gastrenterologia. E aqui é da mais elementar justiça dizer que o ambiente era extremamente simpático e eficiente. Não apenas em Gastre (cujas paredes estavam cobertas de motivos natalícios e não com aqueles cartazes de vísceras doentes com que certos serviços gostam de animar as hostes para fazer concorrência ao Bosch). Mas também em Cardiologia. Num permanente acompanhamento do dr. Fernando Ramalho e de Nunes Diogo, senti-me compreendido, protegido, tratado, sondado e quase curado - o que é meio caminho andado para a cura. Os regulamentos eram flexíveis, desde que as pessoas soubessem reivindicar. E foi o que sucedeu, quando queriam que eu me não levantasse, na noite em que disse que não poderia passar sem ver o debate Soares-Cavaco. O que fiz, embora a RTP1 chegasse ao nosso televisor no meio de uma permanente chuva miudinha que despenteava o prof. Cavaco e punha em risco a excelente e invejável saúde do dr. Soares. Pergunto: não seria favorecer o serviço público permitir que ele fosse visto em condições normais? Deve ser uma questão de antenas, ou dos circuitos de electricidade (que, aliás, são contingentes, uma vez que é possível verificar-se um "apagão" e ficar-se horas sem nenhum fio de luz).Outro aspecto simpático dos serviços de Gastre: quase todo o pessoal, incluindo enfermeiras e auxiliares, sabia conversar com as pessoas, tinha sentido de humor e mostrou-se incansável a todas as horas. Havia mesmo um enfermeiro que tinha um irmão poeta na Bélgica e me falou de Yves Namur e Juarroz!
Duas reservas: em primeiro lugar, sucedeu que para o banho não tinham toalhas, mesmo puídas pela voragem dos dias, mas por vezes davam lençóis que enxugariam muito pouco já nos seus tempos áureos, quanto mais quando a erosão os marcava implacavelmente. Segundo ponto: como me disse a chefe das enfermeiras, Filomena, extraordinariamente amável e simpática, o grande problema daquele serviço era a fome. Na Etiópia, também. Se, por exemplo, o doente devia ter pouco sal na comida, confrontava-se com uma alternativa duramente digital: ou sem sal, ou com sal. As enfezadas sopas que davam, quando não tinham uma pitada de sal, eram absolutamente intragáveis, tendo como único mérito criar um movimento de solidariedade entre os pacientes impacientes. A sensação que se tinha era a de que uma pessoa tinha tropeçado e tombara sobre um charco de lama que lhe enchia a boca. Lembro-me também de um peixe cozido, que, pela sua má catadura, me recusei a comer. Alguém teve a ideia fofa de fazer um embrulhinho e levar para o gato. Pois não é que o gato, voraz devorador de todos os peixes do mundo, o cheirou e não o comeu! De qualquer modo, havia ceia. Pelas 23h a funcionária da cozinha propunha-me um chá de camomila e umas saborosas (a fome é negra...) bolachas de água e sal (o que me lembrava sempre a minha amiga Teresa Villaverde). Quanto ao mais, só motivos de congratulação. Em Cardiologia, senti-me (e era verdade) entre amigos, e uma lindíssima Sandra explicou-me cuidadosamente a diferença entre uma ecocardiografia e uma electrocardiografia. E mesmo a endoscopia foi preparada por uma confidência generosa do meu médico: "Para sentir o que sentem os doentes, pedi para me fazerem uma endoscopia e detestei." Eu também. Professor universitário


segunda-feira, 2 de Janeiro de 2006

Memória de Santa Maria (4)

Meu caro Correia de Campos
Amigo e camarada
Esta é a minha última crónica sobre o tema. Espero que tenha ficado claro que escrevi as anteriores, não por desejo mórbido e muito português de dizer mal, mas porque tenho a convicção de que em muitos planos é possível que as coisas melhorem - mesmo sem investimentos vultuosos, uma vez que as vacas que vejo da janela estão magríssimas.Vou só dar um exemplo. No período de internamento do meu pai as visitas eram uma sufocação. Segundo os regulamentos, das três às quatro. Por volta das três adensava-se uma pequena multidão (como gostam de dizer os jornalistas), pronta para partida. Quando soava o gongue, as pessoas lançavam-se como se fosse a maratona de São Silvestre, numa correria desvairada e muitas vezes desesperada. Era preciso atravessar um dédalo de corredores traiçoeiros e tentar ultrapassar o obstáculo de elevadores a abarrotar de gente, onde era preciso conviver com macas e recipientes de roupa suja. Os de saúde mais poupada resolviam galgar seis ou sete andares numa correria louca. Quando chegavam ao quarto do familiar doente, tinham a língua de fora, a boca arquejante e quase que precisavam de ser internados. Muitos perdiam-se na vertigem dos caminhos e andavam de olhar ensandecido a perguntar onde era a Gastroenterologia ou a Pediatria. Tinham a terrível sensação de que o tempo que iriam estar com o doente, antes do fatídico "a visita acabou", se estava a delapidar. Lembro-me do caso de uma amiga minha que teve de pedir um atestado no emprego em que se declarasse que ela só podia fazer a visita mais tarde. Papelada inútil, papelada acumulada.Agora tudo mudou, pelo menos no serviço onde estive. Podiam entrar entre as 13h e as 19h e 30m. O que era agradável para o visitado que ocupava a sua tarde com o desfile de familiares e amigos. Não vi que este novo modelo provocasse qualquer distúrbio ou incómodo. Tudo corria normalmente. Donde, era possível.
Gostaria de dizer, meu caro amigo, que por vocação sociológica fui tentando saber quanto ganhavam aqueles que passavam noites sem dormir, que atendiam aos caprichos e às infantilidades de cada um com extrema paciência, que mostravam uma dedicação sem limites, tanto entre os médicos como nos auxiliares ou enfermeiras. Cheguei à conclusão que eram mal pagos. Daí que o anúncio de um novo regime de pagamento das urgências, em que os médicos serão pagos com base no número de doentes que os consultam, me parece de um produtivismo algo chocante. Se há muitos doentes, tenderão a despachá-los o mais depressa possível. Se há poucos, tenderão a esquartejá-los em disputas raivosas. Embora eu perceba a necessidade de se fazerem reduções de despesa.PS. - Na minha crónica anterior, cometi um lapso: falei de uma Sandra lindíssima em Cardiologia, e afinal chama-se Sónia. Sei que me cruzei com uma Sandra, porque logo me lembrei do Vergílio Ferreira. Mas não me ocorre onde. Desculpe. Sónia. Professor universitário"