Sunday, December 23, 2007

Season Greatings

As ruas iluminadas e o frio que (finalmente!) chegou anunciam-no. A árvore de Natal foi ficando "composta" com os embrulhos coloridos debaixo dela e brevemente o Menino Jesus comemora mais um aniversário. É Natal!
Como uma criança, ando feliz e entusiasmada. Até fiz um cd para ter uma banda sonora a condizer no carro! E circulo por Lisboa ao som das melodias que parecem só fazer sentido nesta época do ano. Mas hoje até as ruas estão mais desertas, porque depois da euforia das compras quase todos rumaram já às suas terras. Falto eu!
E enquanto fico por cá sonho com o cheiro e a azáfama que vou encontrar na cozinha, com o calor da lareira acesa na sala, as vozes e gargalhadas familiares que enchem a casa... e recordo os natais da minha infância, a maioria passada em casa das avós, entre brincadeiras de primos e apanha de musgo para a construção do grande presépio.
São doces recordações. Sabem a broas de mel, cheiram a açúcar e canela e têm o brilho das luzes que piscam no pinheiro. São presentes que não se vendem em nenhum centro comercial... E são, para mim, o que de melhor o Natal traz.

May your days be merry and bright
And may all your Christmases be white.

Thursday, December 6, 2007

Querida F.,

trato-te hoje por tu como nunca o fiz perante ti porque te falo de igual para igual, apenas de pessoa para pessoa, e independentemente dos papéis e estatutos que fizeram com que as nossas vidas se cruzassem.
Quando te conheci já era conhecida a tua sentença, mas a sua concretização parecia mais longínqua. Logo admirei em ti a força e a generosidade com que enfrentavas o sofrimento e me sorrias, enquanto eu, pequena e impotente, muitas vezes nem sabia bem o que fazer por ti.
Mas partiste a andar, de braço dado com o teu marido, outro herói anónimo, paciente e dedicado... e não pensei que voltasses tão cedo.
Reencontrei-te ontem. Não és a mesma. Seria muito doloroso ver-te se não soubesse quem foste; dói-me ainda mais porque sei quem és por detrás do rosto e do corpo desfigurados e do sofrimento atroz que expressas.
Agonizas. Os teus gritos ouvem-se por toda a enfermaria, ecoam pelo serviço nas noites escuras e frias. É difícil deixar-te confortável ou dar-te privacidade; é difícil olhar o teu marido e os teus filhos, que sofrem contigo sem que para eles tenhamos mais que umas poucas palavras. Tentamos, ainda assim, não te causar dor, proporcionar-vos tempo na companhia uns dos outros, transmitir-te paz...
Mas tens dor. E a morfina que te damos não chega. Desesperas.
Não, não vou falar da instituição, dos profissionais, das insuficiências e incapacidades. Porque tu devias ser maior que tudo isso. E para mim és.
Desejava apenas poder reconhecer mais dignidade na tua morte... e espero que, pelo menos, não morras sozinha.

Thursday, November 22, 2007

Uma noite para recordar

A noite teve muitas peripécias, desde molhas a quedas, passando por telemóveis que se deixam no carro e interrupções na linha de metro... mas foi linda!
Entre piadas, um copo de vinho e o cabelo mais despenteado alguma vez apresentado em público, as canções sucederam-se. Genial, é adjectivo que melhor o caracteriza. Jorge Palma.
Um compositor como poucos, um poeta errante que dá voz à banda sonora da vida de muitas pessoas, de diferentes gerações. Era notório. "Não estamos cá pelo dinheiro". Pois não, decididamente. O público era o mais heterogéneo possível, mas estava unido naquele som e naquela pessoa, sentia aquelas notas e aquelas letras, cada um à sua maneira.
Eu senti este concerto de uma maneira muito especial porque, do outro lado do planeta, está uma voz que gostaria de se ter juntado à minha esta noite, alguém que canta só para mim versos que o Palma não cantou desta vez mas que não me saem da cabeça há um mês...


"O meu amor ensinou-me a partir,
nalguma noite triste
mas antes ensinou-me
a não esquecer que
o meu amor existe."

Quanto às minhas grandes companheiras nesta noite para recordar, essas minhas colegas da "nobre profissão" (citando o taxista que tinha um primo do pai que afinal eram dois e um já morreu, cujo grande problema eram os impostos e uma tosse indescritível, já para não falar da mania de travar nos semáforos verdes. Lol!)... Obrigada pela companhia e pelas gargalhadas! Sois grandes, gajas!

(21 Novembro 2007)

Saturday, November 17, 2007

O banho foi longo e de imersão. O ritual dos 1001 cremes foi cumprido. Deito-me cedo. Os candeeiros de mesa de cabeciera acesos. A roupa de cama acabada de mudar. O edredon quentinho numa noite que até já parece de Outono. Os almofadões a postos. A camisa de dormir das ovelhas que me faz sentir leve como uma miúda de 6 anos. A Joni Mitchel canta baixinho. Um livro faz-me companhia. O cenário está montado. Há semanas que sonho com este serão... Esta noite é só minha!

(15 Nov 07)

Thursday, November 15, 2007

Contagem decrescente

Já está... (e agora?)
O ar continua cheio de ti e ainda ouço a tua voz.
Sento-me e espero que toque a campainha, o telefone... e sei que não vai acontecer. Não agora.
Eu sei que vai passar depressa... (Sei?)
Eu sei que vai ficar tudo bem... (Irá?)
Mas neste momento o que mais sinto é este aperto no peito, este vazio que vem não sei de onde e que dá um nó na garganta, que angustia e não passa...
Passou meia hora. Faltam 40 dias.
Que fazer? Que dizer? Sinto saudades...

(21 Outubro 07)

A morte é uma flor

"A morte é uma flor que só abre uma vez.
Mas quando abre, nada se abre com ela.
Abre sempre que quer, e fora de estação.
E vem, grande mariposa, adornando caules ondulantes.
Deixa-me ser o caule forte da sua alegria."
A Morte é uma flor (Paul Celan)

A morte é uma flor. É. Pode ser, pelo menos. Talvez uma margarida branca. Simples, espontânea, terna, natural. O homem devia olhar para esta flor, olhar para dentro de si e aprender a relativizar os seus mini-dramas pessoais. Porque esta flor só abre uma vez.
Obrigada à Pipa, pelo convite, e a todo o Grupo de Teatro Andamento pela noite de partilha. Um grande aplauso a todos vós.
(19 Outubro 07)

... and we're back!

Perguntava no outro dia a Catarina pelo blog, dizia eu que há muito tempo que não actualizava.
- "Então?"
- "Não sei, acho que não tenho tido nada a dizer ao mundo."
Na verdade tenho andado absorvida em pensamentos tão pessoais que se tornam intransmissíveis, ou pelo menos difíceis de partilhar aqui. Porque o caderninho do costume está cheio de páginas escritas de novo ao longo destes últimos meses, ao sabor de reflexões e canções, como sempre.
Vou ver se encontro algumas "publicáveis"...

Monday, September 10, 2007

A place called home


"Someday I'll go where there ain't no rain or snow
‘Til then, I travel alone
And I make my bed with the stars above my head
And I dream of a place called home"

Encerramento oficial do Verão

Ao lanche houve croissants porque o tempo farrusco já não convidava a gelados. Falávamos então do fim do Verão, da melancolia que Setembro traz... e começa a ouvir-se a trovoada e a sentir-se os primeiros pingos. Continuo o caminho para casa e rapidamente os vejo engrossar. A "chuva-molha-parvos" transformou-se numa boa chuvada.
Chego a casa ensopada.
Lá fora já está escuro apesar de serem só 6 da tarde, o céu está carregado de nuvens, rasgadas por relâmpagos de quando em quando... e os trovões mantém-se rugidos fortes, cada vez mais perto.
Não deixa de ser um espectáculo bonito, mas ainda assim preferia estar a regressar a casa pela marginal, depois de uma boa tarde de praia, com um sol radioso...
Mas não é maresia o aroma que sinto. O inconfundível cheiro de terra molhada após as primeiras chuvas não me deixa sonhar mais...
Parece que está oficialmente encerrado o meu Verão. E como inaugurei este Outono antecipado com uma molha daquelas à antiga, o melhor é mesmo tomar um banho quente... já apetece!

Monday, September 3, 2007

No one ever told me it would be easy. I never thought it would be this hard.

O meu lugar. O meu espaço. O meu papel. O meu dever. O meu querer. O meu poder. O meu tempo. O meu modo. O meu melhor. O meu pior. O meu "eu pessoa". O meu "eu enfermeira".
Todos se misturam e confundem, todos formam quem eu sou, todos porcuro todos os dias, uns com mais dúvidas, outros com mais certezas. Porque não quero e sinto que não posso abdicar de nenhum deles sob pena de perder o fraco rasto que ainda vou tendo de mim própria; mas sinto também que muito do que acredito está constantemente sob a ameaça do cansaço, da rotina, do comodismo e do desleixo instalado.
E assim vagueio em dias como o de hoje. Amanhã será outro dia.
"Another day, another chance to get it right"...

Eduardo Prado Coelho

Há quem diga que quando as pessoas morrem se transformam automaticamente em óptimas pessoas, talentosas, generosas e cheias de outras qualidades admiráveis, mesmo que em vida todos pareçam tê-las esquecido. Não quero, obviamente, cair nesse registo. Mas se de alguém se tem falado, na minha opinião, com muita justiça, é de Eduardo Prado Coelho, um ser iluminado que, para nossa honra, nasceu português.
E se Prado Coelho escreveu sobre tudo um pouco, foi sobretudo nas suas crónicas que mais me cativou com o seu estilo único e inconfundível.
Nestes dias, resolvi recuperar um conjunto de quatro crónicas suas acerca de um internamento num hospital público. Gosto especialmente destas opiniões escritas, destas reflexões. Opiniões que o "comum mortal" nem sempre consegue exprimir, pensamentos que nem todos os utentes do SNS têm possibilidade de publicar, textos que me tocam especialmente a mim que, do outro lado da barricada e tantas vezes imobilizada e amordaçada pelo peso "do sistema", luto diariamente contra a tendência aparentemente inevitável da rotinização e da desumanização...
Deixo então aqui as crónicas transcritas e o meu agradecimento a Eduardo Prado Coelho que, sem sequer suspeitar da minha existência, me ajudou a manter o sentido crítico que tanto temo perder.

"quarta-feira, 28 de Dezembro de 2005

Memória de Santa Maria

Meu caro Correia de Campos, amigo e camarada.
Esta minha carta, que irá provavelmente preencher várias crónicas, tem certamente muito de subjectivo e aproximativo. Mas talvez não seja inútil. Tinha estado internado em Santa Maria em 1972. Agora, muitos anos depois, houve imensas coisas que mudaram, e eu já mal me lembro do que então se passou. Mas há curiosamente um ponto comum. Os corredores continuam a ter relógios que estão todos parados em horas diferentes. O efeito é surreal. Não seria possível tirá-los?Há cerca de seis anos, tive durante um Verão de acompanhar a minha mãe ao serviço de urgências - três vezes, a última definitiva. Escrevi então uma crónica sobre as melhorias que se poderiam fazer no processo de entrada dos doentes e na sala de espera. Tive a satisfação de receber uma carta dos serviços responsáveis pelo funcionamento do Hospital de Santa Maria em que diziam que iam analisar as minhas sugestões. Um acidente de percurso na minha saúde levou-me agora de novo a Santa Maria, e verifiquei que no processo de entrada muitas melhorias tinham sido feitas. A sala de espera tinha sido inteiramente reformulada e batia agora aos pontos a sala de espera da gare de Coimbra B. Apenas um senão. Uma porta lateral onde alguém escreveu à mão "é favor fechar a porta", mas raramente as pessoas se preocupam com isso. Donde, tal como num filme famoso em que Jean-Pierre Léaud, sentado num café, berrava para cada cliente que entrava "La porte!!!!", nós somos obrigados a gritar algo de semelhante ou a irmos regularmente fechar a mencionada porta.
Como exercício poderá ser saudável, mas não ao alcance de todos os doentes - direi mesmo que alguns sofrem com o frio.
Há, depois, a prova da triagem, onde a troco de algumas respostas breves nos indicam um rumo na vida, e no meu caso tratava-se de tomar o corredor imediatamente à esquerda e ir até ao fim. Assim fiz, mas com manifesta infelicidade. Um ser que pertencia a uma empresa de segurança disse-me que tinha de sair do edifício, dar a volta pelo bilhar grande e entrar não sei por que porta. Expliquei-lhe que o médico do serviço de triagem dissera para tomar o corredor imediatamente à esquerda. O homem, que era daquele estilo do idiota que quando lhe apontam a Lua olha para o dedo, opôs-se terminantemente. Pedi-lhe para se identificar - que para isso devia servir o cartão plastificado que tinha ao pescoço, mas o aranhiço eléctrico voltou o cartão para dentro e uivou estrepitosamente para dizer que não se identificava. Comecei a empurrá-lo e estava disposto a dar-lhe um merecidíssimo murro não fora o facto de ele se ter encostado a uma maca onde me pareceu ver um doente inquieto com a sua própria sobrevivência.Moral da história: sei que não é fácil estar naqueles lugares, mas exige-se uma pessoa que saiba pensar, sorrir, ser amável e ajudar os outros em vez de criar obstáculos para ostentar o seu poder anão. Sugiro que coloquem esta lamentável personagem na vigilância aos ratos que estão nas caves do hospital (isto sou eu a imaginar), mas nunca em contacto com outros seres humanos.Amanhã continuo. Professor universitário


quinta-feira, 29 de Dezembro de 2005

Memórias de Santa Maria (2)


Meu caro Correia de Campos, amigo e camarada:
Continuemos a nossa conversa. O tal corredor à esquerda de que já falei conduzia ao Serviço de Observações, que não me deixou boas recordações. Há uma espécie de princípio: "Ó vós que aqui chegais abandonai tudo o que pertencia ao mundo." Um despojamento total. Tire a roupa: anotam peça a peça e amarrotam-na cuidadosamente em sacos que não têm pegas, para dar ao acompanhante que espera lá fora. Depois disseram: "Tire os óculos." Respondi: "Não tiro." A seguir o relógio. E segundo o regulamento, deveria entregar o telemóvel. Recusei. Por fim, o livro que levava comigo. Segundo o regulamento, não se pode ter livros! É assim que pretendem fomentar a leitura? Recusei entregar os Doidos e Amantes da Agustina Bessa-Luís, dizendo que da Agustina ninguém jamais me separaria. Deram-me então um papel com a lista das minhas infracções, para eu assinar. O que fiz orgulhosamente. Mas, como dizia o outro, orgulhosamente só. Quase todos os que ali chegavam vinham num tal estado de desamparo existencial que aceitavam todas as ordens, sobretudo se enroladas naquele tom melífluo que pretende infantilizar o outro: "Agora a roupinha, senhor Silva." Conheço mesmo um caso em que a uma senhora já de idade pretendiam tirar os dentes que lhes pareciam postiços. E não eram. Não sei quem elaborou regulamento tão estúpido e quais as fundamentações para ele (medo dos roubos?). Imagine apenas, meu caro amigo, aquelas pessoas que sem óculos não vêem um palmo adiante do nariz e entram numa bruma espessa. Imagine ainda que elas também entram num espaço sem tempo, em que já quase não sabem se é noite se é dia, no mundo dos vivos. O desespero é total. Antes
deixar que nos roubem o relógio do que ficar nesse limbo da existência em que os séculos se confundem.
Segundo ponto. É suposto que as pessoas que ali entram sejam levadas a diversas modalidades de exames nos mais diversos andares. São então conduzidas por corredores extremamente frios e sentem que pelo baixo custo de uma taxa moderadora lhes deram por extra uma excursão à Lapónia. As bandeiras das janelas estão abertas certamente no cumprimento daquele princípio que qualquer dona de casa aplica no seu lar: é preciso arejar a casa. Mas aquelas viagens no gelo, à espera de elevadores que avariam dia sim, dia não, têm algo de uma verdadeira aventura. Há outro aspecto interessante: é o serviço que envia que fica encarregado de ir buscar a pessoa na sua maca. Por motivos de engarrafamento, por vezes é preciso esperar cerca de uma hora que apareçam. Os menos resistentes acabarão por morrer. Outros apanharão broncopneumonias. Apenas alguns, num vigoroso princípio de selecção natural, conseguem sobreviver. E então logram aplicar o princípio nietzschiano: o que não me mata dá-me forças.Talvez haja vantagens que eu ignore nesta alternância violenta entre o calor das salas e o frio intenso dos corredores. Se assim for, Santa Maria cumpre na perfeição a sua tarefa. Não é a taxa moderadora, mas o frio moderador. Neste país insuportavelmente frio, onde os estrangeiros pensam que "frio" é uma palavra desconhecida. Professor universitário


sexta-feira, 30 de Dezembro de 2005

Memórias de Santa Maria (3)

Meu caro Correia de Campos
Amigo e camarada
Finalmente chego ao Serviço de Gastrenterologia. E aqui é da mais elementar justiça dizer que o ambiente era extremamente simpático e eficiente. Não apenas em Gastre (cujas paredes estavam cobertas de motivos natalícios e não com aqueles cartazes de vísceras doentes com que certos serviços gostam de animar as hostes para fazer concorrência ao Bosch). Mas também em Cardiologia. Num permanente acompanhamento do dr. Fernando Ramalho e de Nunes Diogo, senti-me compreendido, protegido, tratado, sondado e quase curado - o que é meio caminho andado para a cura. Os regulamentos eram flexíveis, desde que as pessoas soubessem reivindicar. E foi o que sucedeu, quando queriam que eu me não levantasse, na noite em que disse que não poderia passar sem ver o debate Soares-Cavaco. O que fiz, embora a RTP1 chegasse ao nosso televisor no meio de uma permanente chuva miudinha que despenteava o prof. Cavaco e punha em risco a excelente e invejável saúde do dr. Soares. Pergunto: não seria favorecer o serviço público permitir que ele fosse visto em condições normais? Deve ser uma questão de antenas, ou dos circuitos de electricidade (que, aliás, são contingentes, uma vez que é possível verificar-se um "apagão" e ficar-se horas sem nenhum fio de luz).Outro aspecto simpático dos serviços de Gastre: quase todo o pessoal, incluindo enfermeiras e auxiliares, sabia conversar com as pessoas, tinha sentido de humor e mostrou-se incansável a todas as horas. Havia mesmo um enfermeiro que tinha um irmão poeta na Bélgica e me falou de Yves Namur e Juarroz!
Duas reservas: em primeiro lugar, sucedeu que para o banho não tinham toalhas, mesmo puídas pela voragem dos dias, mas por vezes davam lençóis que enxugariam muito pouco já nos seus tempos áureos, quanto mais quando a erosão os marcava implacavelmente. Segundo ponto: como me disse a chefe das enfermeiras, Filomena, extraordinariamente amável e simpática, o grande problema daquele serviço era a fome. Na Etiópia, também. Se, por exemplo, o doente devia ter pouco sal na comida, confrontava-se com uma alternativa duramente digital: ou sem sal, ou com sal. As enfezadas sopas que davam, quando não tinham uma pitada de sal, eram absolutamente intragáveis, tendo como único mérito criar um movimento de solidariedade entre os pacientes impacientes. A sensação que se tinha era a de que uma pessoa tinha tropeçado e tombara sobre um charco de lama que lhe enchia a boca. Lembro-me também de um peixe cozido, que, pela sua má catadura, me recusei a comer. Alguém teve a ideia fofa de fazer um embrulhinho e levar para o gato. Pois não é que o gato, voraz devorador de todos os peixes do mundo, o cheirou e não o comeu! De qualquer modo, havia ceia. Pelas 23h a funcionária da cozinha propunha-me um chá de camomila e umas saborosas (a fome é negra...) bolachas de água e sal (o que me lembrava sempre a minha amiga Teresa Villaverde). Quanto ao mais, só motivos de congratulação. Em Cardiologia, senti-me (e era verdade) entre amigos, e uma lindíssima Sandra explicou-me cuidadosamente a diferença entre uma ecocardiografia e uma electrocardiografia. E mesmo a endoscopia foi preparada por uma confidência generosa do meu médico: "Para sentir o que sentem os doentes, pedi para me fazerem uma endoscopia e detestei." Eu também. Professor universitário


segunda-feira, 2 de Janeiro de 2006

Memória de Santa Maria (4)

Meu caro Correia de Campos
Amigo e camarada
Esta é a minha última crónica sobre o tema. Espero que tenha ficado claro que escrevi as anteriores, não por desejo mórbido e muito português de dizer mal, mas porque tenho a convicção de que em muitos planos é possível que as coisas melhorem - mesmo sem investimentos vultuosos, uma vez que as vacas que vejo da janela estão magríssimas.Vou só dar um exemplo. No período de internamento do meu pai as visitas eram uma sufocação. Segundo os regulamentos, das três às quatro. Por volta das três adensava-se uma pequena multidão (como gostam de dizer os jornalistas), pronta para partida. Quando soava o gongue, as pessoas lançavam-se como se fosse a maratona de São Silvestre, numa correria desvairada e muitas vezes desesperada. Era preciso atravessar um dédalo de corredores traiçoeiros e tentar ultrapassar o obstáculo de elevadores a abarrotar de gente, onde era preciso conviver com macas e recipientes de roupa suja. Os de saúde mais poupada resolviam galgar seis ou sete andares numa correria louca. Quando chegavam ao quarto do familiar doente, tinham a língua de fora, a boca arquejante e quase que precisavam de ser internados. Muitos perdiam-se na vertigem dos caminhos e andavam de olhar ensandecido a perguntar onde era a Gastroenterologia ou a Pediatria. Tinham a terrível sensação de que o tempo que iriam estar com o doente, antes do fatídico "a visita acabou", se estava a delapidar. Lembro-me do caso de uma amiga minha que teve de pedir um atestado no emprego em que se declarasse que ela só podia fazer a visita mais tarde. Papelada inútil, papelada acumulada.Agora tudo mudou, pelo menos no serviço onde estive. Podiam entrar entre as 13h e as 19h e 30m. O que era agradável para o visitado que ocupava a sua tarde com o desfile de familiares e amigos. Não vi que este novo modelo provocasse qualquer distúrbio ou incómodo. Tudo corria normalmente. Donde, era possível.
Gostaria de dizer, meu caro amigo, que por vocação sociológica fui tentando saber quanto ganhavam aqueles que passavam noites sem dormir, que atendiam aos caprichos e às infantilidades de cada um com extrema paciência, que mostravam uma dedicação sem limites, tanto entre os médicos como nos auxiliares ou enfermeiras. Cheguei à conclusão que eram mal pagos. Daí que o anúncio de um novo regime de pagamento das urgências, em que os médicos serão pagos com base no número de doentes que os consultam, me parece de um produtivismo algo chocante. Se há muitos doentes, tenderão a despachá-los o mais depressa possível. Se há poucos, tenderão a esquartejá-los em disputas raivosas. Embora eu perceba a necessidade de se fazerem reduções de despesa.PS. - Na minha crónica anterior, cometi um lapso: falei de uma Sandra lindíssima em Cardiologia, e afinal chama-se Sónia. Sei que me cruzei com uma Sandra, porque logo me lembrei do Vergílio Ferreira. Mas não me ocorre onde. Desculpe. Sónia. Professor universitário"

Thursday, August 16, 2007

Como se tu fosses eu

Recordo hoje o dia em que "chegaste com três vinténs e o ar de quem não tem muito mais a perder". Esse olhar que me prendeu desde o primeiro dia (ok, do segundo), esse toque de qualquer coisa que fascina, que cativa, que dá vontade de continuar a procurar a sua origem e o seu segredo, embora a parte melhor seja esta em que tento desvendar tudo sobre esse teu mundo com a certeza de que nunca vou conseguir conhecê-lo por inteiro. E ainda bem que assim é.
Os teus "lábios de silêncio", o "paraíso no teu olhar", a tua "cara de anjo mau", fazem-me acreditar que "a gente vai continuar"...
Então "encosta-te a mim", porque ainda não vivemos 100 mil anos mas eu sinto-me capaz disso, porque "és a minha maçã de Junho" em todas as épocas do ano e porque, mesmo nos teus acessos de lobo malvado, "és bem vindo, amor".
(9 Agosto 2007)

Tuesday, August 7, 2007

Arrumar gavetas

Arrumar gavetas é daquelas actividades quase impossível de qualificar, à qual só me dedico mesmo em três situações: 1) quando não dá para ignorar mais e, no meu limite, decido que "tem que ser" e ponho fim ao caos; 2) quando tenho algo que não me apetece mesmo nada fazer e arrumar gavetas (imagine-se!) serve de fuga e surge como algo inevitável e inadiável; 3) quando não tenho absolutamente nada que fazer e me dá para aí.
Foi esse o caso de hoje e, inexplicavelmente, acabou por me trazer uma enorme nostalgia.
Resolvi arrumar gavetas e caixas de recordações, cheias de pequenos nadas que fui acumulando ao longo dos anos... Bilhetinhos daqueles que se mandam nas aulas, fotografias, cancioneiros de campos de férias, cartões antigos, bilhetes de cinema e espectáculos, medalhas, agendas velhas, presentinhos, cadernos com letras de músicas, notas e pensamentos, flores secas, dedicatórias, convites...
A minha história, os meus encontros e desencontros estão ali descritos, expostos, arquivados. Mas vivos. Vivos dentro daquelas gavetas fechadas e, descobri, vivos também em mim, gravados algures debaixo da pele, ainda que disfarçados e tantas vezes esquecidos na correria do presente e entre os projectos do futuro.
Desisti de arrumar ou fazer qualquer selecção de objectos. Limitei-me a recolocar tudo nos seus devidos lugares, como se de repente tivesse medo de deitar fora alguma parte de mim. Revisitei a minha vida. Revisitei-me a mim própria. E isso fez-me muito bem.
Acabei de fechar a última gaveta e senti-me uma verdadeira pirata a fechar a gruta onde escondeu o seu tesouro, na certeza de que ali ninguém mais o encontrará.

Palavras

A palavra é talvez das mais mortíferas armas que o Homem criou, mas é ao mesmo tempo a melhor aliada da paz.
Porque falamos demais e porque às vezes deixamos muito por dizer, mas também porque guardamos cá dentro as palavras, boas ou más, que mais nos marcaram, aqui fica a letra de uma música que diz tudo...

"Quando as palavras se murmuram
Não passam de segredos que se sussurram.
Há palavras que se usam como armas,
Palavras que disparam como balas.

E de tantas as palavras,
É difícil escolher
A palavra certa para te dizer
E te fazer entender.

Palavras cruzadas, palavras trocadas,
Palavras por palavras, doces e amargas.
Há palavras que se usam sem intenção
E às vezes as palavras fogem-nos dos mão.

A palavra é armadilha,
A palavra é compromisso,
A palavra é comando e feitiço.

Há palavras a lembrar
E há palavras a esquecer,
Há palavras que nem chegam a nascer:
Palavras por dizer."

Sunday, July 22, 2007

Estou a caminho

Está quase.

Já contei os dias, agora conto as horas. E o meu coração acelera, antecipando o momento por que espero. Sei que vai ser simples mas grandioso, suave mas intenso, doce mas nada enjoativo, mágico mas (finalmente) real... Sei que vai fazer balançar tudo cá dentro como no primeiro dia. E sei que, como sempre, vou ter a certeza de que, como canta o Ben Harper no leitor do carro, "my happy ever after is in your eyes".

Até já!

Neste infinito fim


Detesto finais!

Detesto quando abro o armário ou o frigorífico e acabou exactamente aquilo de que preciso, ou quando algo de que gostava está esgotado, extinto, terminou. Destesto perder ou estragar objectos que estimo.

Sou das que se afeiçoa às personagens dos livros. Leio as últimas páginas mais devagar, para fazer render e evitar o fim.

Gosto de ficar no escuro da sala de cinema ou enroscada no sofá depois de o filme terminar, a pensar como continuaria a vida dos personagens... porque o "viveram felizes para sempre" é sempre demasiado vago.

Revejo frequentemente os episódios da minha serie favorita para matar as saudades dos personagens, como quem telefona de vez em quando a um amigo que mora longe.

Fico sempre melancólica no final das férias, como hoje, em que apesar de estarmos em Julho sinto que aquela sensação de final de Verão tomar conta de mim: aquele morno entardecer de Setembro que nos lembra que o Inverno vem aí e brevemente dos dias radiosos de praia vão restar apenas lembranças, conchas partidas e alguma areia no fundo do saco.

Mas não há pior final do que aquele que implica a separação, a despedida de alguém que nos é (ou foi) querido. Deixa sempre um amargo na boca, um nó na garganta, um aperto no peito... Só que foram também estes os finais que mais me fizeram crescer, aprender a contornar a saudade, a viver com ela e a levar comigo o que de bom houve antes da despedida, por pior que tenha sido o fim. Para que consiga, também eu, alcançar o meu final feliz e continuar a viver mesmo depois do fecho da cortina, do acender das luzes ou do virar da última página de alguma história triste.


Grandes amigos, velhos amigos, amigos de sempre!
Porque os dias se acumulam em semanas e meses que passam sem estarmos juntos, mas somos capazes de os recuperar como se apenas horas tivessem passado desde a última vez que nos vimos...
Porque as conversas são sempre longas e até os silêncios são agradáveis...
Porque o riso continua a unir-nos apesar dos caminhos paralelos que por vezes percorremos...
Porque quando olho para trás, revejo fotografias ou relembro momentos... vocês estão sempre lá!
Sabem que mais? Já tenho saudades vossas outra vez!

Friday, July 6, 2007

Hoje pude ver denovo a beleza destas paragens, onde o que é humano e cosmopolita ainda se dilui no que há de mais natural e selvagem.
Senti o cheiro a maresia, os meus pés sobre esse chão de areia fina que arrepia e queima, sob o Sol cada vez mais quente que ilumina tudo à minha volta.
Entrei no mar frio, que me envolveu e abraçou com força, ao mesmo tempo que me deu aquela sensação de liberdade tão familiar.
E é aqui, sentada na areia molhada, olhando a pequena traineira colorida que se afasta no horizonte, enquanto as ondas me tocam os pés e o calor me invade a pele, que sinto a brisa suave acariciar-me o rosto e, no seu sussurro, dizer "Bem vinda a casa"...
Obrigada.

Saturday, June 9, 2007

Thumbing my way

Colei há pouco um post-it sobre o poder da música em nós, escrito já há algum tempo e esquecido algures dentro de um caderno. Resolvi agora acrescentar outro, com uma música que tem, verdadeiramente, poder sobre mim. É dos Pearl Jam (que, a propósito, tocaram ontem em Oeiras!). Podia pôr aqui qualquer uma das minhas favoritas... Black, Better Man, Last Kiss, Elderly Woman Behind The Counter In A Small Town (uff!), Nothingman, Light Years, Yeloow Ledbetter, Come Back...Na verdade todas me dizem algo!
Mas não sei porquê hoje ao acordar lembrei-me de ter lido algures que num concerto o Eddie Vedder chorou perante o público, emocionado por milhares de pessoas acamparem durante dias para os verem actuar, enquanto eles dormiam confortavelmente num hotel e, à mistura, veio esta múscia que não me sai da cabeça... Aqui fica!


I have not been home since you left long ago

I'm thumbing my way back to heaven

Counting steps, walking backwards on the road

I'm counting my way back to heaven

I can't be free with whats locked inside of me

If there was a key, you took it in your hand

There's no wrong or right, but I'm sure theres good and bad

The questions linger overhead

No matter how cold the winter, theres a springtime ahead

I'm thumbing my way back to heaven

I wish that I could hold you

I wish that I had

Thinking bout heaven

I let go of a rope, thinking thats what held me back

And in time I've realized, its now wrapped around my neck

I can't see whats next, from this lonely overpass

Hang my head and count my steps, as another car goes past

All the rusted signs we ignore throughout our lives

Choosing the shiny ones instead

I turned my back, now theres no turning back

No matter how cold the winter, theres a springtime ahead

I smile, but who am I kidding?

I'm just walking the miles, every once in a while I'll get a ride

I'm thumbing my way back to heaven

Thumbing my way back to heaven

I'm thumbing my way back to heaven...

Thursday, June 7, 2007

Bandas sonoras

Ao longo da vida de cada um são muitas as canções que marcam momentos e períodos, que têm a capacidade de nos transportar no tempo, o poder de verbalizar os nossos sentimentos e trazer à flor da pele as mais diversas emoções (Singing my life with his words Killing me softly with his song Killing me softly with his song Telling my whole life with his words). Tal como nos filmes, também a vida tem banda sonora...
E é incrível a forma como uma mesma música faz parte da banda sonora das vidas de diferentes pessoas, de diferentes gerações (Yesterday Love was such an easy game to play Now I need a place to hide away); ou a forma como os pensamentos e sensações cantadas por alguém num cantinho do mundo, na sua língua, tocam de forma tão especial pessoas quem a ouvem a milhares de quilómetros de distância e que, muitas vezes, nem falam essa língua (Quand il me prend dans ses bras Il me parle tout bas, Je vois la vie en rose).
A música é uma expressão universal, parte de um património comum a toda a humanidade. Arrebata paixões (I've kissed your lips and held your hand shared your dreams and shared you bed I know you well, I know your smell, I've been addicted to you)... causa arrepios (you're in the arms of the angel may you find some comfort here)... move multidões (And there won't be snow in Africa this Christmas time The only gift they'll have this year is life)... cria revoluções (Get up stand up stand up for you rights)... desperta mentalidades (Another day, another change to get it right)... leva à euforia (Birthday party, cheesecake, jelly bean, boom! You Symbiotic, patriotic, slam book neck, right? Right It's the end of the world as we know it and I feel fine), conduz às lágrimas (I know you'll be the star in somebody else's sky but why can't it be in mine?)... une corações (O meu amor ensinou-me a partir nalguma noite triste)... cria hinos (One love One blood One life You got to do what you should)... sobrevive ao tempo, à distância, à mudança...
Não só os grandes compositores, não só as grandes bandas, até mesmo os pequenos jingles dos anúncios e genéricos das series da nossa infância (Tu andas sempre descalço Tom Sawyer...) fazem um qualquer "click" cá dentro quando começam a tocar.
Porque provocam estimulação do hipocampo, dirão alguns... eu digo apenas: porque nos tocam a alma.
(Agosto 2006)

Wednesday, June 6, 2007

Carta para Josefa, minha avó

Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.
Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.
Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.
Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”.
É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua.


José Saramago, in “Deste Mundo e do Outro"


Às minhas e a tantas outras avós com quem me cruzo todos os dias... que apenas não se chamam Josefa.

Cheira a Verão

Já viram a diferença que traz o calor, o Verão?
As pessoas andam mais bem dispostas, sorriem mais! Abandonam aquele ar cinzento e aquela postura encolhida dos dias de frio e chuva e parecem, sem dúvida, mais felizes!
As roupas são mais leves, mais coloridas... os dias são maiores... as crianças brincam mais na rua, os casais passeiam mais de mãos dadas, os velhotes trocam mais os centros comerciais pelas sombras dos jardins públicos... cheira a vida nas ruas!
Cheira a férias! E que saudades das férias grandes de Verão! Privilégio exclusivo dos estudantes, um grande património que perdi!
Agora as férias reduzem-se a alguns dias por cada seis meses... mas levantar cedo para ir trabalhar até já nem custa tanto quando este Sol entra pela janela e os senhores da rádio dizem que vamos ter muito bom tempo :)

Friday, June 1, 2007

Espírito Peter Pan




Hoje é dia da criança.


Acumulam-se as festas, os passeios, as reportagens na televisão dedicadas a este dia, dedicadas às crianças. E é realmente importante que se recorde o quanto elas são importantes e o quanto devem ser amadas e respeitadas, neste como em todos os dias do ano. Tal como todos os outros "dia de algo", acaba por se tornar um pouco comercial, é certo... mas ainda assim não deixa de ser um dia simpático.

E pode ser uma deixa para pensar no que é feito da criança que fomos um dia, ou onde estaremos a esconder a criança que (dizem) todos temos dentro de nós.

Se é sempre impossível resistir à energia e ao sorriso de uma criança, mesmo daquelas a quem a infância foi roubada pela miséria, pela guerra ou pela exploração, porque será que tantos adultos se esquecem de sorrir com a desculpa de que a vida não lhes corre bem?

Quem dera que todos nós conseguíssemos conservar o espanto no olhar quando vemos algo novo, a curiosidade de saber e conhecer mais, a coragem de questionar, a facildade de soltar uma gargalhada, a capacidade de descomplicar...

Às vezes parece que com a idade a maioria das pessoas deixa de distinguir as cores da vida e passa a vê-la a preto e branco, em tons de cinzento. Correm contra o relógio, com objectivos talvez, mas sem ideais, irritam-se com demasiada facilidade, passam o tempo a criticar e a lamentar-se, pouco sorriem, raramente elogiam algo ou alguém...

Se calhar sou eu que sofro da síndrome Peter Pan e gostava de não crescer... ou pelo menos de não crescer assim... Mas se não da síndrome, não me importava nada que pelo menos mais pessoas pudessem ser contagiadas pelo espírito de Peter Pan! O espírito do menino que teima em não crescer e continua a acreditar... acreditar em algo, em alguém... lutar por isso!

Eu continuo a acreditar que tal é possível não apenas na Terra do Nunca, mas também aqui, na nossa Terra.

Tuesday, May 29, 2007

O melhor da vida!

Acordar sem despertador... despertar de um sonho bom... ler um livro num qualquer recanto ao Sol do fim de uma tarde de Inverno... o sabor do chocolate... o cheiro da relva acabada de cortar... olhar as cicatrizes das quedas de criança... o toque dos lençóis lavados... receber uma carta ou um postal de alguém de quem se gosta... rever os desenhos animados de que gostava quando era mais pequena... o pôr do Sol... o nascer do Sol... as praias desertas nos finais de Setembro... sentir a areia fina nos pés... sentir o sal do mar na pele e no cabelo... o cheiro do pão acabado de cozer da minha avó... longos banhos de água quente... descobrir formas nas nuvens... ver casais de velhotes a passear de braço dado... o toque da pele fria do nariz dos cães... banhos de mangueira no quintal... revisitar caixas de papelão cheias de recordações... brincos compridos... concertos... olhar nos olhos de quem amo... sentir o frio na barriga quando ando na montanha russa... o toque das teclas do piano... abraços fortes... o cheiro de um livro novo... o primeiro dia de aulas de sempre... colher flores num jardim... ver barcos no horizonte... o sabor das lágrimas de saudade... a memória de sorrisos... fogo de artifício... a sensação de liberdade após uma corrida... receber um elogio que não se espera... a azáfama na cozinha nas vésperas de Natal... aprender algo novo... sentir o poder da música... o som das gargalhadas... aquele silêncio bom, quando não são precisas palavras... álbuns de fotos... a sensação de alma lavada depois de chorar... escorregar na palha... arrepios... conseguir alcançar algo que se desejou muito... ser útil a alguém... o toque do pêlo da minha gata... andar de baloiço... rir até doer a barriga e as bochechas... caminhar sem destino... apanhar conchas... rever amigos... viajar... descobrir dinheiro dentro de uma mala ou de um bolso... beijar... reler um livro de que gostei muito... bigodes de leite... ouvir milhares de pessoas a cantar "one" e não conseguir evitar chorar... noites de Verão... noites de lua cheia... bikinis... ramos de margaridas... aplausos... velas... andar de chinelos...comer pizza... comprar rifas daquelas enroladinhas... estar à lareira nas tardes frias de Inverno... comemorar vitórias do Benfica e da selecção... fazer compras... ver horas de episódios da minha serie favorita... estrear uma peça de roupa nova... molduras... comer pipocas... pintar as unhas... namorar... ver a chuva através da janela... tirar fotografias... apaixonar-me... receber o ordenado... andar de eléctrico... fazer anos... a cor azul... comer fruta de Verão... sentir-me bonita... balões... a minha mãe e o meu pai... beber sumo de laranja natural... estar de férias... saltos altos... conduzir a caminho de casa... ir ao cinema... mascarar-me no carnaval... animais bebés... estrelas do mar... fazer biscoitos de limão... comer biscoitos de limão... fotos a preto e branco... chegar a casa ao fim do dia... festas... amizades que sobrevivem à distância e aos desencontros... sentir que fiz bem o meu trabalho... ir aos bailaricos dos santos populares... fazer planos... passear por Lisboa... cantar... não ter nada para fazer... escrever... dunas... apenas viver!

Feira do Livro

Já começou a feira do livro!
Que ritual tão saboroso...
São os dias do ano em que todos percorrem o parque em busca de algo em especial ou simplesmente à aventura, tendo o prazer de ver reunidos todos os livros, de todos os tipos, para todos os gostos...
É por isso que atrái todo o tipo de pessoas. Do mais intelectual dos leitores à mais ingénua das crianças que anseia por um bonito livro de contos, passando pelo estudante que, sempre com a carteira nas lonas, tenta encontrar aquele livro técnico que lhe faz falta a um preço mais em conta... Esta mistura de gente no meio da mistura de livros é outro dos encantos da feira!
E é tão bom ler! Os livros fazem-nos companhia, levam-nos a lugares distantes, ensinam-nos e dão-nos que pensar, fazem-nos rir e chorar... Quem dera todos pudessem apreciar o prazer de ler um bom livro!

Borlas

Mas que raio têm as pessoas com as borlas?! Parece que lhes despertam um lado animal!
É claro que é muito agradável ganhar algo... um brinde, um presente, um prémio... mas não é motivo para se perder a calma nem a razão! Ah e tal é de graça? Pois é vê-los a empurrar, acotovelar, pisar... Vale tudo!
E desengane-se quem pensa que estas coisas só acontecem em ambientes populares! Acontecem em plena Lisboa, em ambientes "selectos" como hotéis e salas de conferência, em congressos onde senhores enfermeiros, médicos e farmacêuticos se atropelam por uma caneta, um bloco de notas ou um porta-chaves de um laboratório qualquer.
Mas não fica por aqui! Pior é mesmo vê-los a comer! Coffee-break, almoço? Não importa! O objectivo parece mesmo ser o de varrer tudo no mais curto espaço de tempo... e conseguem! Em meia dúzia de minutos as mesas estao completamente limpas.
E pelos corredores, qual é o principal tema de conversa? As declarações dos prelectores, os temas debatidos? Nem pensar! Pois é a comida... que estava tão boa ou tão fraquinha...
Essa parece ser a principal motivação e o principal indicador de sucesso... porque é de borla, já se vê!

Wednesday, May 23, 2007

A gente vai continuar


"Tira a mão do queixo, não penses mais nisso
O que lá vai já deu o que tinha a dar
Quem ganhou, ganhou e usou-se disso
Quem perdeu há-de ter mais cartas para dar
E enquanto alguns fazem figura
Outros sucumbem à batota
Chega aonde tu quiseres
Mas goza bem a tua rota
Enquanto houver estrada para andar
A gente vai continuar
Enquanto houver estrada para andar
Enquanto houver ventos e mar
A gente não vai parar
Enquanto houver ventos e mar

Todos nós pagamos por tudo o que usamos
O sistema é antigo e não poupa ninguém, não
Somos todos escravos do que precisamos
Reduz as necessidades se queres passar bem
Que a dependência é uma besta
Que dá cabo do desejo
E a liberdade é uma maluca
Que sabe quanto vale um beijo

Enquanto houver estrada para andar
A gente vai continuar
Enquanto houver estrada para andar
Enquanto houver ventos e mar
A gente não vai parar
Enquanto houver ventos e mar
Enquanto houver estrada para andar
A gente vai continuar
Enquanto houver estrada para andar
Enquanto houver ventos e mar
A gente não vai parar
Enquanto houver ventos e mar"

Desabafo...

Há dias em que chego a casa muito cansada... quer dizer, quase todos os dias saio do trabalho muito cansada! É um trabalho exigente, física e psicologicamente... mas há dias em que sinto que supero os meus limites.
Acho que quem passa à porta daquele serviço, velhinho, com a cara por lavar, não tem ideia do que lá vai dentro. Temos tão pouco... Fazemos tanto... Podíamos fazer tanto mais... tão melhor...
E é isso que frustra! Não é a quantidade de solicitações, não é a abundância de trabalho, é a escassez de recursos! Somos poucos, temos pouco espaço, temos pouco material, às vezes não temos mesmo material... Mas o hospital tem relva nova e os lugares de estacionamento delimitados de fresco, a tinta branca... Irónico, não?
Às vezes dá vontade de gritar... outras de chorar... não raras vezes de fugir! (lol) Mas é impossível não ficar.
Custa! Custa porque eu visto a farda como quem "veste a camisola". Porque eu suo. Porque eu ando km por turno. Porque eu abdico do meu tempo de pausa. Porque eu me limito a engolir (literalmente!) qualquer coisa ao almoço. Porque eu saio sempre fora de horas.
Não por dinheiro, não com vista à progressão na carreira... apenas porque trabalho com e para pessoas! Pessoas que precisam de cuidados e que são completamente alheias a todas as carências que o serviço possa ter, embora sofram necessariamente com elas.
Pessoas, não números. Pessoas, não papéis!

Uma história...

Ela tem mais de 90 anos, ele mais de 70... Foram ambos deixados numa urgência hospitalar. Sem morada, sem telefone, sem o nome de alguém de referência. Estiveram lá alguns dias até a sua presença se tornar insustentável naquele serviço. Foram transferidos para enfermarias. São mãe e filho. Ela anda, é praticamente auto-suficiente, sabe o que diz. Ele está acamado, confuso, agitado, imobilizado. Alguém a leva a visitar o filho. Ele não a reconhece. Ela chora, ajeita-lhe ternamente a dobra do lençol e beija-lhe a face, como se ele fosse ainda a criança de quem ela pôde cuidar em tempos. Mãe e filho são mais tarde transferidos para um lar de terceira idade.

Que vida é esta, a dos nossos idosos? Que dignidade para eles? Outrora filhos, hoje pais e avós... ou apenas solitários. Muitas vezes, tudo ao mesmo tempo...


"Parado e atento à raiva do silêncio

De um relógio partido e gasto pelo tempo

Estava um velho sentado no banco de um jardim

A recordar fragmentos do passado


Na telefonia tocava uma velha canção

E um jovem cantor falava na solidão

Que sabes tu do canto de estar só assim

Só e abandonado como o velho do jardim?


O olhar triste e cansado procurando alguém

E a gente passa ao seu lado a olhá-lo com desdém

Sabes eu acho que todos fogem de ti prá não ver

A imagem da solidão que irão viver

Quando forem como tu

Um velho sentado num jardim


Passam os dias e sentes que és um perdedor

Já não consegues saber o que tem ou não valor

O teu caminho parece estar mesmo a chegar ao fim

Para dares lugar a outro no teu banco do jardim


O olhar triste e cansado procurando alguém

E a gente passa ao seu lado a olhá-lo com desdém

Sabes eu acho que todos fogem de ti prá não ver

A imagem da solidão que irão viver

Quando forem como tu

Um resto de tudo o que existiu

Quando forem como tu

Um velho sentado num jardim" (Velho, Mafalda Veiga)

19 Maio 2007



É hoje a benção das fitas na alameda da universidade.

Há um ano foi a minha vez! Trajes negros sob o Sol abrasador, pastas cheias de fitas coloridas agitadas no ar, chuva de papelinhos brilhantes... Palmas, abraços, sorrisos e lágrimas, orgulho e esperança, algum medo dos próximos passos...

Passou um ano. Passou um ano?! Passou um ano...

Foi um ano especial, um bom ano. Mas é impossível olhar para trás sem sentir saudades dos quatro que o antecederam.

O espírito académico é realmente algo que marca! As praxes sofridas... a primeira noite trajada na serenata... as serenatas que se seguiram... a recepção aos "nossos" caloiros... os jantares... as festas... os festivais académicos... as idas à queima de Coimbra... as fotos do último dia de aulas... a benção na alameda... a Aula Magna cheia para ver os novos enfermeiros... Está tudo cá dentro! Vivido, aproveitado, gozado até ao fim! E ainda bem!

Foram alguns dos momentos que criaram e consolidaram amizades, que permitiram manter o equilíbrio entre estágios, trabalhos e frequências, e que (também) compõem a "vida de estudante".

Porque todos podemos tirar um curso superior. Mas só quem é praxado e baptizado, quem traja, praxa e baptiza, quem benze e queima as fitas é que sabe o que é andar na faculdade!

So it begins

Ora aqui está então o meu blog!
E o que tenho eu para dizer ao mundo? Nada de jeito, pelo menos a maior parte do tempo!
Mas volta e meia passo umas ideias para o papel e esta é uma forma de as tirar da gaveta... São só pensamentos, comentários... de ontem e de hoje... sobre tudo e sobre nada... Post-it's que resolvi colar aqui!