Thursday, December 6, 2007

Querida F.,

trato-te hoje por tu como nunca o fiz perante ti porque te falo de igual para igual, apenas de pessoa para pessoa, e independentemente dos papéis e estatutos que fizeram com que as nossas vidas se cruzassem.
Quando te conheci já era conhecida a tua sentença, mas a sua concretização parecia mais longínqua. Logo admirei em ti a força e a generosidade com que enfrentavas o sofrimento e me sorrias, enquanto eu, pequena e impotente, muitas vezes nem sabia bem o que fazer por ti.
Mas partiste a andar, de braço dado com o teu marido, outro herói anónimo, paciente e dedicado... e não pensei que voltasses tão cedo.
Reencontrei-te ontem. Não és a mesma. Seria muito doloroso ver-te se não soubesse quem foste; dói-me ainda mais porque sei quem és por detrás do rosto e do corpo desfigurados e do sofrimento atroz que expressas.
Agonizas. Os teus gritos ouvem-se por toda a enfermaria, ecoam pelo serviço nas noites escuras e frias. É difícil deixar-te confortável ou dar-te privacidade; é difícil olhar o teu marido e os teus filhos, que sofrem contigo sem que para eles tenhamos mais que umas poucas palavras. Tentamos, ainda assim, não te causar dor, proporcionar-vos tempo na companhia uns dos outros, transmitir-te paz...
Mas tens dor. E a morfina que te damos não chega. Desesperas.
Não, não vou falar da instituição, dos profissionais, das insuficiências e incapacidades. Porque tu devias ser maior que tudo isso. E para mim és.
Desejava apenas poder reconhecer mais dignidade na tua morte... e espero que, pelo menos, não morras sozinha.

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